Karenina.it - Interpoesia

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Resumo: A produção poética nas hipermídias aponta cada vez mais para um produto de linguagem híbrida. Esta prática, interpoética, esta fora dos métodos tradicionais de produção artística, pois aqui se trata de uma linguagem de intervenção - de código para código - com uma característica mais ativista. Esta relação de  intermediaridade que ainda traz traços de um  mundo de percepção positivista, passa a indagar toda e qualquer representação, em que as “matrizes de linguagem” não se dão de maneira apartada entre si, e sim trazendo para o expectador uma produção que envolve o poder de lermos de maneira híbrida, as produções artística de conteúdo poético.

 

A Intermediaridade Interpoética

            Wilton Azevedo

 

O apparatus do design visivo nas telas dos computadores, para que possamos manipular nossas escritas na obtenção de uma escritura, nada tem feito além de simular as máquinas já existentes da cultura analógica. Esta tradição que produz signos de forma apartada entre si , e que por decorrência de uma cultura tecida em códices, vem cada vez mais dependendo da tecnologia para que possamos assumir uma nova ambiência sígnica, produto de uma escritura  híbrida de linguagem programática.

As aproximações dos códigos solicitadas pela introdução de novos meios tecnológicos, sempre salientaram a correspondência entre a forma verbal, visual e sonora, e esta correspondência,  não resultou em convicções” (Oliveira, 1999: 12), e sim de  como a poética destes suportes já apontava para  um produto híbrido, “ criação plástico – poética”.

Os suportes digitais passaram a configurar uma nova noção de poética, “A forma do texto poético é própria. Ela já é um desenho, mostra-se em verso, configura um espaço novo no pergaminho, na página ou na tela, tempo e espaço novo no pergaminho, na página ou na tela, tempo e espaço se buscando, se sobrepondo. Os primeiros teóricos perceberam este conluio de formas e de códigos.” (Oliveira, 1999: 12)e conclui,“o que a vista abarca de um só lance, ele (o poeta) nos enumera lentamente, pouco a pouco, e muitas vezes sucede que, ao último traço apresentado, já esquecemos o primeiro…Para a vista, as partes contempladas conservam-se constantemente presentes, ela pode percorrê-las quantas vezes lhe aprouver; para o ouvido, porém, as partes ouvidas se perdem, caso não se gravem na memória. (Oliveira apud. Lessing, 1999: 14)

A Lingüística é apenas uma parte da vasta ciência geral dos signos, “Engano inicial que se retificou, em seguida, porque se constatou que a Lingüística não é parte, mesmo que privilegiada, das ciência geral dos signos; a Semiologia é que é parte da Lingüística: muito precisamente, no dizer de Kristeva, aquela parte responsável pelas grandes unidades significantes do discurso, pois, qualquer que seja o objeto da Semiologia (gesto, som, imagem etc.) ele só é acessível ao conhecimento através da língua. (Oliveira apud. Saussure, 1999: 20)

Diante destas considerações apontadas, podemos afirmar que os suportes digitais vêm definitivamente nos oferecendo a necessidade de encararmos a linguagem humana como produto plural, mas que tem que ser pensado a sua produção como prática interpoética[1].

Esta prática, interpoética, esta fora dos métodos tradicionais de produção artística, pois aqui se trata de uma linguagem de intervenção e intersecção  - de código para código - com uma característica mais ativista. Esta relação de  intermediaridade que ainda traz traços de um  mundo de percepção positivista, passa a indagar toda e qualquer representação, em que as “matrizes de linguagem” não se dão de maneira apartada entre si, e sim trazendo para o expectador uma produção que envolve o poder de lermos de maneira híbrida e intersectiva do que pode haver de comum neste produto de linguagem. 

Esta situação interventiva e intersectiva, esta diretamente ligada a uma “situação de interação” e intermediaridade, como propõe Ardenne (2002: 16), é natural que formemos em nossas cabeças, interpretações que tendem a um signo pronto, é uma assemblage do latim contextus , é a apropriação artística  pura e simples da realidade que se constitui na mais pura e tradicional idéia de intermediaridade,  “a presença dos olhos do espectador revela uma política dos sentidos” (2002: 25).

Não se pode pensar diante do formato deste novo suporte digital, em uma retomada dos conceitos ligados a linguagem, a  poética nas hipermídias não envolve um dado plástico dos nossos olhos, ouvidos e a fala que passem a revelar “...a política dos sentidos”, mesmo que para isso nos sentimos constrangidos diante deste novo pensar – intermediário – no seu resultado final.

 Digo constrangimento, porque o anseio de todo artista, mesmo os remanescentes da arte pela arte, é ser compreendido.  O produto final/híbrido potencial da prática deste modo de obter do exercício poético,  nos faz aceitar em praxis mais veloz, uma poesis digitalis[2], que  nos contemple em estarmos diante de uma escritura digital que permite este fazer sem distinção entre os códigos.

A prática de uma poética em forma de programa nos suportes digitais sugere que seu “co-autor-articulador” passe a se utilizar de uma linguagem de artifícios polisemantizados, ainda que simulando máquinas que: editam, escrevam, sonorizam, acabam por  criar tramas de tal fina espessura em suas filigranas, que não conseguimos mais identificar com a cultura de nossas percepções.

Usar e tramar neste processo de co-autoria e articular produtos de linguagem poética, nos faz notar  um sistema de sintaxe com um fim definido, mas que não se reconhece nem o princípio e nem o término desta estrutura. A autora Nuria Vouillamoz em Literatura e Hipermedia La irrupción de la literatura interactiva precedentes y crítica, faz um interessante estudo sobre as relações entre a produção literária convencional e a produção em suportes digitais e diz: “como esquema conceitual, é plurisignificativo e acaba por oferecer múltiplas ocorrências, múltiplos acessos e leitura, de maneira que é possível reconhecer uma certa analogia entre o modelo hipertextual desenvolvido pela informática e o polisemantismo tão reclamado pelo campo da literatura.” (Vouillamoz, 2000: 74).

 

Estas questões a respeito de uma polisemântica advindo dos textos literários, foram muito estudadas no que diz respeito à luz da semiologia, na poética sociológica de Bakhtin  e dos elementos fundamentais da escritura em Roland Barthes: “Primeiro, a natureza ambígua da palavra e a versatilidade significativa da linguagem em sua projeção histórica – conceito de ‘heteroglosia’ou ‘plurilingüismo’ - ; segundo, a inscrição do discurso em uma pragmática, comunicativa – graças a qual se define sua natureza dialógica.” (Vouillamoz, 2000: 76).

 

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


INSTAABILITY -  Wilton Azevedo,  2002

 

InstAAbility I. Wilton Azevedo, 2002

 

A preocupação de Bakhtin em ter detectado essa polifonia sócio-lingüística, essa diversidade de vozes, e da interação estabelecida entre elas, torna mais fácil o nosso trabalho em notarmos que o ato de utilizar  software como escritura, é partilhar de vozes potenciais. Neste mesmo sentido, Umberto Eco sempre propôs uma discussão mais abrangente, não se limitando apenas ao terreno da literatura, mas também levando para os estudos do campo da música, das artes visuais, demonstrando a característica que a maioria das produções de linguagens são concebidas como uma Obra Aberta: “Partindo da idéia de que toda obra de arte tem por definição uma natureza dual: de um lado, é uma forma fechada e se completa como produto de uma vontade criadora; mas, ao mesmo tempo, é aberta tanto que oferece a possibilidade de uma infinidade de interpretações sem, no entanto, alterar sua singularidade tal como foi concebida no momento de sua criação” (Vouillamoz, 2000: 77-78).

Foi esta mesma ambigüidade de significados que acabou de potencializar o simbolismo na segunda metade do século XIX e que desencadeou os manifestos de vanguarda do século passado. Neste sentido, não há mais como impedir que o meio hipermidiático assuma de vez uma organização híbrida, “Na literatura, estes modos de produção se traduz, segundo Eco, na criação de um discurso que não se limita na transmissão de um conteúdo unívoco sem que potencialize as possibilidades significativas do texto substituindo uma forma discursiva seqüencial por uma estrutura em ‘módulos de desordem organizado’”(Vouillamoz apud. Eco, 2000: 79).

Os “módulos de desordem organizado” ao qual se referiu Eco, são a verdadeira ação da produção híbrida  de natureza labiríntica, que nos impõe aquele tal constrangimento de que já falei, no momento em que nos vemos diante desta arborescência  de caminhos, sem desistirmos de nossa participação desta mesma trama como, sujeito, metasujeito e intersujeito. Desta maneira, devemos com muito rigor nos concentrar no rastro de uma certa assepsia que a produção poética hipermidiática ainda deixa, isto porque ao navegarmos por estes índices narrativos somos afetados pelo nosso museu interior de imagens, textos e sons, guardados em gavetas a espera da “desordem”.

 

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


InstAAbility I. Wilton Azevedo, 2002

 

A tradição artística emprestou as pessoas talentosas, o poder de formalizarem os seus próprios códigos, que com o tempo foram pegos de surpresa pela tecnologia, que apontava para uma produção mise en vue , uma produção de intervenção ao rígido código dos códigos, que denuncia a participação estética de todos os gêneros, e esta mesma tradição como que por vingança, toma de volta o que emprestou  exigindo de quem produz nestas tecnologia digital de autoria uma atitude interpoética mais analítica.

Os experimentos artísticos que tanto ajudou a forjar o gênero artístico  do século XX, nos entregaram de forma delievy uma produção que se caracteriza por sua hegemonia sígnica, que durante um longo tempo nos enganou se fazendo passar por um produto interdisciplinar da criação.

A poética das hipermídias compartilha com dados de um programa que tem como modelo a linguagem humana, avatares sem limites, modelos humanos que se fazem passar por novidade, mas que vem trazendo como grande transformação a quebra desta hegemonia dos matriciais de linguagem e assumindo de vez as “vozes”, “sons” e “textos”, em um  produto humano que é a “fala plural”, para quem tem o que dizer.

Bibliografia

 

 

Ardenne, Paul. Um Art Contextuel.Création Artistique em Milieu Urban em Situation D´Intervention de Participation. Flammarion , Paris, 2002.

 

Oliveira, Valdevino Soares de. Poesia e Pintura Um Diálogo em três Dimensões, São Paulo, Fundação Editora  da UNESP (FEU),1999.

 

Quéau, Philippe. METAXU, Théorie de L´art Intermédiaire. Collecion Milieux Editions Champ Vallon. Seyssel. 1989.

 

Vouillamoz, Núria. Literatura e Hipermedia La irrupción de la literatura interactiva: precedentes y crítica. Barcelona; Paidós Papeles de Comunicación, 2000.

 

 

 

ANEXO

 

 

INTERPOESIA: O MANIFESTO DIGITAL[3]

 

         Os aparatos tecnológicos  e as imagens provenientes de máquinas que fazem regurgitar para o mundo em forma de transistor (miniatura) o que foi copiado, colocam cada vez mais o estudo das linguagens e a sua produção inseridos em uma necessidade  multidisciplinar  e intersemiótica. Não há como evitar os meios digitais como registro da intelecção humana, e principalmente como uma nova escritura a serviço da produção artística.

 

                A arte, especificamente a deste século, se caracterizou  em adicionar aos sistemas pictóricos, e mesmo às poesias, elementos entrópicos que produziam uma espécie de estranhamento, fazendo da produção artística dita de vanguarda, uma máquina de produzir ruídos. O artista então conferiu à espécie humana a documentação de um índice artístico que teve sua validade questionada quanto ao registro do aqui-agora.

 

                Esta verdadeira guerra com a presentidade da obra mostrava sinais das primeiras discussões do que hoje chamamos de interatividade. Esta reavaliação pode ser feita hoje de maneira mais clara, já que o mundo digital e seus softwares colocaram toda e qualquer tipo de linguagem a serviço da não linearidade – tão preconizada pelo exercício artístico deste século -, determinando uma nova noção de fronteira  entre os códigos. Com esta práxis, surge uma poesia que coloca o público como agente principal na criação e intervenção, na maneira de ler e de se obter novos signos a todo instante. Assim nasceu a Interpoesia, um exercício intersígnico que deixa evidente o significado de trânsito sígnico das mídias digitais, desencadeando o que se pode denominar de uma nova era da leitura.

 

                Esta leitura, proveniente de uma escritura numérica – conhecida como programa -, produz uma linguagem que, além de híbrida, destrói os conceitos ortodoxos sobre emissor e receptor (1), e coloca a linguagem digital como uma espécie de linguagem potencializada pelo leitor, podendo ser atualizada ou ressuscitada a qualquer instante, esvaziando o caráter imóvel e passivo que as linguagens tradicionais analógicas deixaram marcadas ao caracterizar o público como apenas receptor.

 

                O aspecto criográfico[4] das imagens tradicionais, ou seja, o que faz propiciar a criação de uma cultura de olhar congelado a respeito do instante de uma imagem, agora muda, já que com a intervenção do público no que chamamos de obra, deixa de existir apenas este instante imóvel e com o tempo a idéia de obra pronta.

 

                Este novo Teseu pode obter nos novos labirintos de texto, inúmeras alternativas rizomáticas, se comparado com a mídia impressa por exemplo. O problema é que agora se tenta ultrapassar este sistema descartando a espessura histórica das mídias tradicionais, mas se este novo Teseu não tem mais que amarrar a linha para achar a saída, ou seja, o happy end, isto não quer dizer que a linha deixa de existir. Assim como em nossas vidas não temos apenas uma versão para nossas histórias, a hipermídia coloca à disposição uma possibilidade de escritura multidisciplinar e um compromisso com uma poesia intersígnica.

 

                Sabemos que na Idade Média o contador de histórias narrava  para quem não dominava a linguagem das escrituras, e hoje precisamos de diretores de cinema para nos contar as mesmas histórias porque não dominamos as escrituras da linguagem cinematográfica, provavelmente os programas de autoria se transformarão em um futuro não muito distante, na possibilidade de sermos nossos próprios narradores, mediadores de nossa própria existência na necessidade de contarmos nossa própria história:

 

                “O além exige a mediação de aquém. Sem um fundo de invisível, não há forma visível. Sem angústia do precário, não há necessidade de memorial. Os imortais não batem fotos entre si. Deus é luz; somente o homem é que é fotógrafo. Com efeito somente aquele que passa, e sabe disso, quer permanecer.”

( Debray, 1993:28 )

 

            Se passamos hoje a maior parte de nosso tempo com estas próteses criadoras de imagens e ambientes virtuais que são os computadores, a nossa “angústia do precário”, não estará ligada somente ao quanto a linguagem humana tem de perecível, mas ao que é necessário simular nestas máquinas para avaliarmos a linguagem do desconhecido  ou do que esta por vir a ser.

 

                O sonho de imortalidade é o que nos dá a possibilidade de criarmos várias histórias com finais potenciais, pois o que confere um caráter linear às linguagens é o que a vida tem de perecível e de passageira – parafraseando Borges, o final da obra muitas vezes se dá pelo cansaço do artista.

 

                Nós dialogamos hoje muito mais com máquinas do que com “seres carnais”. Segundo Santaella (1996:166), os seres noológicos estão se proliferando cada vez mais, e é a teoria dos signos que pode dar conta de uma análise de visão mais interativa dessas linguagens. Se estas próteses com “olhos”, “cérebro”, “ouvidos” e “bocas” regurgitam o mundo à sua semelhança, é necessário então reavaliarmos esta ruptura, já que os meios digitais (via algoritmos) estão cada vez mais próximos da vida humana.

 

            Se na arte do século XX foi necessário manifestos para agrupar as linguagens artísticas em seus interesses semióticos, neste novo século que se adentra a interatividade proporcionar que o usuário crie o seu próprio manifesto: o de interagir.

 

Wilton Azevedo

São Paulo

1998

 

 

foto Rita Varlesi 2002

 

DADOS BIOGRÁFICOS

WILTON AZEVEDO é paulistano, artista plástico, designer gráfico, poeta, professor formado em Comunicação pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, mestre e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC SP. Autor de O que é Design (Brasiliense), Os Signos do Design (Global), e Criografia: A Escritura da Imagem Congelada (Editora Mackenzie, no prelo), Interpoesia, Cd-rom. É Professor orientador do Pós-Graduação de Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, fazendo parte da equipe que credenciou este mesmo curso pela Capes; foi vice diretor da Faculdade de Letras, Artes, Comunicação e Ciência Educacionais na Universidade São Judas Tadeu. Realizou várias exposições em museus e galerias particulares no Brasil, EUA, França e Cuba, e apresentação de CD Roms no México, França, Itália e EUA, Holanda, Alemanha, Inglaterra, França, Argentina, Roma e Espanha. Publicou o Cd Rom INTERPOESIA, em parceria com Philadelpho Meneses e publica agora em 2003 o Cd Looppoesia.

 

 



[1] Ver manifesto digital em Interpoesia, Cd Rom lançado em 2000 por mim e Philadelpho Meneses. Segue em anexo.

[2] Este termo é extraído do livro de Friedrich  Blöck, IO Poesis digitalis, BLATTWERK, 1997.

[3] Este texto foi escrito quando da  execução do  Cd Rom Interpoesia  em 1998, e faz parte do Cd.

 

4 Diz respeito à imagem congelada.