Dogville: o inefável sabor da vingança

Konstantin Gavros

Donatien-Alphonse-François, o marquês de Sade, conta - em A filosofia na alcova - que Luís XV, ao dirigir-se a Chardolais, "que matara um homem para se divertir", lhe diz: "- Eu vos perdôo, mas também àquele que irá matar-vos."

Há uma ética a ser dissecada na fala de Luís XV. Uma ética que coloca todos os homens em pé de igualdade. Uma ética que não faz distinção entre fortes e fracos, entre poderosos e submissos, entre homens livres e escravos. Uma ética cujo princípio é o da mais pura igualdade, pois todos estão perdoados de antemão, mas devem também estar preparados para arcar com as conseqüências de seus atos. Uma ética que pressupõe o direito de vingança e o referenda como algo justo - e justo exatamente por igualar o assassino e, no caso, o provável justiceiro que o perseguirá: colocados um diante do outro, eles resolverão entre si, da maneira mais pura e mais digna, o acerto de contas pela violência que o primeiro cometeu gratuitamente.

Essa é, contudo, uma ética incompreensível para nós, educados em uma civilização cujos pilares nascem do direito romano e do cristianismo. Para muitos de nós, as palavras de Luís XV são tão incompreensíveis quanto a última parte do filme Dogville, de Lars Von Trier.

De fato, a vingança está exilada de nossas vidas, como se ela fosse um gesto que nos diminuísse, nos inferiorizasse, ou nos tornasse moralmente fracos. O ultrajado que ousa escolher o caminho da vingança é, entre nós, punido pelo Estado, pela religião e pela sociedade. Claro, fomos educados para perdoar e amar, ainda que o mundo nos apedreje...

O que todos escondem, no entanto, é que vivemos em uma sociedade hipócrita, na qual, de um lado, nos consumimos, impotentes e em silêncio, em nossos desejos de vingança, e, de outro, somos treinados, desde muito cedo, a reprimir o que sentimos, pois nos ensinam que seremos considerados bons e exemplares apenas quando nos comportarmos de maneira servil.

Quem é o melhor empregado? O que corteja, de maneira sóbria e gentil, equilibrando-se entre a subserviência e um falso ar de responsabilidade; ou mesmo o bajulador declarado, um tipo que é sempre vencedor.

Qual é o melhor cidadão? O que se submete às leis em cuja elaboração ele não foi - e jamais será! - chamado a opinar; aquele que se deixa escorchar pelas taxas e pelos impostos injustos ou abusivos, mentindo a si mesmo que, sim, o Estado nos suga, mas para beneficiar a todos igualmente; e o estúpido crédulo que, sentindo-se injustiçado, mas confiante nas leis, feitas apenas para uma minoria, contrata um advogado, abre um processo no Fórum mais próximo, e vê sua vida e suas economias definharem ao longo dos anos, enquanto a Justiça lhe sorri.

Qual é o melhor filho? O mais obediente, o mais submisso, o que acata todos os "nãos" como se fossem uma bênção; o que - semelhante a um cão - lambe as mãos de quem o castra e humilha.

O filme de Lars Von Trier nos escandaliza somente por uma única razão: ele é o espelho do mundo que construímos com nossa covardia. Nós somos Dogville. Cultivamos nossas mesquinharias, nossas frustrações e nossos medos, fruindo desse prazer masoquista que nos foi inculcado desde o ventre de nossas mães. Mas sempre prontos a, no silêncio da nossa falsa bondade e esboçando o sorriso de um tartufo, espoliarmos, abusarmos e violentarmos a primeira Gracie que aparecer em nossas vidas. Realmente, não há maior lucidez do que a do marquês de Sade, quando - também em A filosofia na alcova - ele nos diz que "aquilo que os idiotas chamam de humanidade não passa de uma fraqueza nascida do temor ou do egoísmo".

Mas o que ocorreria ao mundo se cada um de nós pudesse exercer, sem censura ou medo, as suas pulsões de vingança, por mais cruéis que elas fossem? Regrediríamos, certamente, ao que os filósofos chamam de "estado de natureza", o suposto estágio que antecede o início deste em que vivemos, e que os filósofos apreciam chamar de "contrato social". Um contrato de cláusulas leoninas, segundo as quais a imensa maioria deve servir e apodrecer na miséria, na fome e na doença, enquanto uma minoria legisla e governa em causa própria, além, é claro, de enriquecer. E denominamos esse estado de absoluta discrepância de poderes com um outro adorável eufemismo: "democracia". Uma palavra que de tão falsa chega a me provocar pruridos anais...

As regras, como vemos, são muito simples: eu te exploro e você me agradece (ou, como é o costume, finge agradecer). Se, por alguma incontrolável razão, você decidir se vingar... bem... para isso existem as prisões e os hospícios...

Contudo, um alerta: até agora falamos, neste artigo, daqueles 40% da população brasileira que não mora em favelas e alimenta-se três vezes ao dia, pois o restante vive à margem do sistema em que as regras da hipocrisia legal vicejam. Seria um exercício saudável aos nossos intelectuais - de esquerda e de direita - uma estadia de quatro semanas em uma favela - todas elas, aliás, comandadas pelo narcotráfico -, pois descobririam um outro país, no qual a vingança fria e calculada - ou seja, o direito de retribuir em igual medida o mal que foi cometido - comanda as relações sociais, criando um equilíbrio e uma harmonia só comparáveis aos que usufruíamos quando ainda habitávamos a selva.

E a história não nos desampara neste momento: compulsemos os melhores tratados e veremos que a verdade só triunfa quando escolhe, como aliada, a violência. Os servos só deixaram de ser espoliados quando encostaram a faca na garganta dos seus opressores. Da mesma forma, certamente também nós guardamos a lembrança dos poucos momentos em que ousamos erguer a cabeça e nos revoltamos. Aqueles minutos de prazer, semelhantes em tudo a uma deliciosa sucessão de orgasmos, foram os únicos em que ousamos ser verdadeiros, e são eles, hoje, que nos salvam do completo embotamento.

É exatamente o que Dogville nos ensina. Ao final do filme, inebriados pela correta decisão de Grace, alegres por ela ter feito o que não temos coragem de fazer, recordamos outro trecho de Sade: "Só a piedade e a beneficência são perigosas no mundo. A bondade é apenas uma fraqueza cuja ingratidão e a impertinência dos fracos forçam sempre as pessoas honestas a se arrependerem." O prêmio de Grace por sua absoluta bondade foi apenas a sua queda. Uma derrocada, aliás, orquestrada por Tom, o arquétipo de todos os moralistas.

Na verdade, o que Dogville nos mostra é que o chamado "contrato social" precisa ser urgentemente reescrito. E se eu vier a ser consultado sobre o teor das novas cláusulas, recomendarei que haja apenas uma: "Olho por olho, dente por dente." Essa é a única regra capaz de instituir justiça e igualdade entre os homens.

Konstantin Gavros é escritor.

O filósofo francês Roger Garaudy, na adolescência, era ateu, mas estudava num colégio de padres. Numa prova lhe pediram os argumentos de Tomás de Aquino sobre a existência de Deus. Ele tirou dez, ao passo que os alunos crentes não foram tão incisivos na exposição das provas de que Deus deve necessariamente existir. Diante disso, o professor lhe perguntou como poderia expor com tanta precisão e rigor um argumento com uma conclusão lógica irrefutável e continuar não acreditando em Deus. Garaudy respondeu: “A minha inteligência diz que é lógico que Deus exista, mas o meu coração não o sente. Os argumentos não são capazes de criar a fé no coração humano”.

GARAUDY, R. Palavra de homem. São Paulo: Difel, 1975.

Pensamento Budista

 Não acredite em algo simplesmente porque a tradição diz para acreditar, ou porque muitas gerações de pessoas, nascidas em distintos lugares, durante séculos, tenham acreditado.

Não acredite em algo pelo simples fato de muitos acreditarem ou simularem que acreditam, assim como não acredite porque os Sábios de outras épocas tenham acreditado, ou porque os "livros",  escritos por personagens importantes, dizem para acreditar.

Não acredite nem nos homens importantes, nem nos homens sensíveis.

Acredite unicamente naquilo que você tenha experimentado, verificado e aceitado, depois de submetê-lo ao ditame da razão e à voz da sua consciência. É melhor saber depois de haver pensado e discutido, que aceitar os saberes que nada discutem para não ter que pensar.

Fernando Savater, filósofo

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