MOVIMENTOS ANTI-GLOBALIZAÇÃO OU ANTI-HEGEMONIA GLOBAL?

CONTRA-PODERES:
UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL!

 

 

 

                     

 

 ©  by FERNANDA GIANNASI

 

                                                                                            
          
                        Jan./2003

 

 

 

                                              

                        "Os filósofos se limitam

a interpretar o mundo

 de maneiras diferentes.

O fundamental é

 transformá-lo."

 Karl Marx.

 

Nosso objetivo neste texto é buscar, principalmente, coletar as principais idéias e opiniões das diversas correntes do pensamento contemporâneo e dos teóricos das ciências humanas e sociais, que vêm analisando a emergência dos chamados “novos”movimentos sociais ou a nova sociedade global, que, depois de episódios como o de Seattle e Gênova contra o endividamento dos países pobres, nos têm feito refletir o nosso papel enquanto ativistas do movimento em defesa dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-documento, dos sem-trabalho, das vítimas do cancerígeno amianto, enfim de todos os excluídos do planeta e vitimados por uma das mais cruéis formas de exploração do homem pelo homem: a globalização econômica e o livre mercado, entronizados pelos seguidores do fundamentalismo econômico, os ditos neoliberais.

                                                                                                      A autora    

 

Introdução

Com a massificação globalizante do uso da INTERNET, as ONGs(Organizações Não-Governamentais), ativistas e movimentos sociais em geral ganharam um aliado importantíssimo contra a hegemonia da informação e com isto promover a disputa com os poderes, constituindo-se em verdadeiros contra-poderes ou “revolucionários nômades”, conforme definido por Negri e Hardt,  subvertendo potencialmente a nova ordem capitalista.

Utilizando-se de videoconferências, listas de discussões, home pages e de todas facilidades deste meio, principalmente a velocidade da dispersão da informação, estes “subversivos cibernáuticos”, transformaram-no em ferramenta de luta contra a marginalização em favor dos mais despossuídos, buscando nivelar as relações de poder entre o local e o global. Este tipo de ativismo propõe-se a pensar localmente(definindo os problemas, necessidades e demandas) para atuar globalmente e assim gerar as mudanças necessárias. Conforme tão bem definiu Ani di Franco “Sabendo portar, toda ferramenta é uma arma”.

Buscamos em autores como Portes, Sassem, Evans, Fonseca, Evers, Vogel, Scavone, Thébaud-Mony, Paoli, entre outros, o referencial teórico para refletir a emergência destes “novos”movimentos sociais, que surgiram de maneira espontânea, empírica, anárquica para se contrapor às necessidades momentâneas e pontuais frente à globalização da economia e os interesses hegemônicos das corporações transnacionais e dos Estados-Corporativos, na busca de apreender os seus mecanismos e de frear os efeitos desintegradores e desarticuladores, que, em nome dos princípios do livre mercado, da competitividade e "da defesa do interesse generalizado e coletivo dos cidadãos", estão na verdade promovendo uma das mais perversas formas de "desapropriação das oportunidades de vida".

            Buscam construir com isto um espaço de cidadania ou uma “cidadania de protesto”, conforme denominado por Souza (1994)[1], constituindo-se enquanto contra-poderes, que são definidos como movimentos sociais organizados em torno de uma causa específica, constituídos criticamente contra o sistema de dominação estabelecido e não estruturados como os sistemas clássicos de representação coletiva (como partidos, sindicatos).

 

Globalização por baixo ou contra-hegemônica

 

Numa economia em escala globalizada, diante de políticas governamentais influenciadas pelo pensamento neoliberal, as análises feitas pelos sociólogos e professores, Tilman Evers(1983), sobre a filosofia política dos movimentos alternativos na Alemanha, e P. Evans(1998), sobre a globalização por baixo(from below) ou contra-hegemônica "como ferramentas de luta contra a marginalização", as quais transcreveremos a seguir, nos servem para entender e explicar este fenômeno social da constituição dos contra-poderes na luta contra o amianto.

            Em sua análise, Evers situa como pano de fundo uma crise generalizada do consenso e dos padrões tradicionais de legitimidade, onde os poderes (governo, empregadores e o aparelho sindical corporativo), os três pilares de sustentação do modo capitalista de produção dentro do propalado sistema tripartite negocial, se unem pelo compromisso com o crescimento industrial, apesar dos protestos ecológicos, antimilitaristas e até anti-industriais, que só recentemente começaram a emergir na ausência de partidos políticos que expressem a identidade coletiva.

            Ele atribui a emergência de movimentos sociais novos como “sinal de uma procura de elementos de um consenso novo, por enquanto limitado a subgrupos, numa relação de causa e efeito com a crise da legitimidade dominante”. Estas iniciativas espontâneas[2] são denominadas em alemão Bürgerinitiativen (iniciativas de cidadãos).

Por não se sentirem representados pela grande maioria das entidades existentes e na ausência de interlocutores para a negociação de suas demandas coletivas, estes cidadãos, por meio desta ação, se expressam contra o não reconhecimento e a defesa de seus interesses na esfera pública.           

            Por seu lado, Evans descreve três diferentes tipos de movimentos transnacionais contra-hegemônicos ou contra-poderes que têm funcionado como suporte aos grupos marginalizados:

 

1.      Redes de Apoio Transnacional(transnational advocay networks), basicamente dedicadas à defesa dos direitos humanos e ambientais. Acreditam que quanto mais divulgada globalmente a informação de um caso de lutas locais, mais poderosa poderá ser sua defesa e portanto a nivelação dos poderes sociais. E que ao contrário, quando mais isolado se encontrar um grupo marginalizado, mais impotente estará em relação aos efeitos excludentes da globalização. Se através da ação global, estas causas se tornam públicas, mantendo sua força e caráter particular, existem muito mais possibilidades de que sejam reconhecidas e bem-sucedidas(o autor cita o caso de Chico Mendes).

 

2.      Redes Transnacionais de Trabalhadores e Consumidores(transnational  consumer/labour networks). "O poder de compra como ferramenta global de uso político local". O autor cita o exemplo da má publicidade gerada contra a Nike quando se tornaram públicas as condições em que seus produtos eram fabricados no Camboja. Da mesma forma ocorreu com a proposta de boicote veiculado na Internet a produtos indonésios para pressionar mudanças nas relações com o Timor Leste. No caso das vítimas do amianto se propôs, por exemplo, durante o Congresso Mundial do Amianto em Osasco em 2000 um boicote na Europa aos produtos da Eternit enquanto não se resolverem as ações de indenizações das vítimas.

 

 

3.      Movimentos de trabalhadores respondendo a demandas globais(embora mantendo sua lógica reivindicativa tradicional). As experiências têm demonstrado que os trabalhadores dos países desenvolvidos não alcançam melhoras em suas condições de trabalhos e salários a não ser que apóiem os trabalhadores de países pobres a desenvolverem ferramentas políticas e econômicas para enfrentar suas precárias condições de trabalho e reivindicar melhorias.

Desprezados estes movimentos, que eram qualificados até recentemente pelos poderes como tendo posições supostamente “apolíticas” e “ateóricas”, segundo Evers, por enfocarem um só problema e pela sua falta de articulação com as organizações engajadas no processo produtivo, constituem-se uma geração política nova. E diferente. Compõem-se em geral dos excluídos: mulheres, operários jovens e “velhos” desempregados, aposentados, inválidos pelo e para o trabalho, minorias étnicas, culturais ou sexuais, que se mobilizam contra a destrutividade do tecido social, a "necrofilia" do capitalismo. O enfoque difere substancialmente dos conceitos tradicionais empreendidos, pois defendem “organizar segundo os interesses, não por número de cabeças". Acreditam que as mudanças importantes são de tal tipo que não podem ser impostas aos outros somente pela lei ou por decreto administrativo; têm de ser difundidas através de modelos que remodelem a textura social de baixo para cima, através de "um fazer diferente".

A visão e tratamento dado pelos grupos hegemônicos de poder a estes movimentos têm sofrido paulatinamente modificações por não poderem mais desprezar e desconhecer a força dos mesmos, os quais têm sido insistentemente tratados e denominados de "terceiro setor", na tentativa de desidelologizar e despolitizar a sua ação e caracterizá-la como meras atitudes caridosas, solidárias e de benemerência, realizadas por "pessoas generosas e de boa vontade", buscando com isto reforçar a não necessidade de remunerá-las, tendo em vista ser "a sua ação voluntária e desprendida". Da mesma forma, as Nações Unidas elegeram o ano de 2.001 como aquele dedicado a estas ações de solidariedade, no Ano Internacional do Voluntário, reforçando a existência destes movimentos, que afinal custam pouco ao Estado e a ao setor privado, para tentar refrear o caos social promovido pela nefasta globalização e o aumento dos excluídos em todo o mundo e, em muitos casos, preenchendo as lacunas da inexistência ou ausência da ação do Estado, substituindo suas atribuições constitucionais, principalmente na esfera da saúde, educação, bem-estar social etc.

Rudolf Bahro, militante verde alemão em sua luta anti-industrialista, afirma que “a sobrevivência é uma questão da espécie, não de classe”, “a luta contra o industrialismo deve prevalecer sobre a luta de classes”.

            Evans, na mesma linha, sustenta que este tipo de movimento emerge como uma forma de resposta e desafio às elites do poder global, através de um reforço dos poderes locais e suas capacidades reivindicativas, sem contudo buscar transformar as leis globais de mercado e de construir uma nova ideologia dominante.

              Evers, por seu lado discorda, afirmando que todos estão do lado de fora com relação a algum aspecto mais ou menos específico da organização social dominante, mobilizados contra a destrutividade social do capitalismo (“As forças produtivas se tornaram destrutivas”). Segundo sua opinião pessoal “são as noções dominantes do político e de fazer política é que estão sendo decompostas por estes movimentos alternativos e para as quais está sendo recomposta uma concepção nova”.

Estes movimentos alternativos - os contra-poderes ou a globalização contra-hegemônica ou por baixo -, em nossa visão e experiência tentam, antes de mais nada, rediscutir o significado do trabalho, da vida, do adoecer e desconstruir paradigmas como a identificação do progresso com o crescimento industrial ou o desenvolvimento das forças produtivas e a concepção de política como algo que se faz através de e pelo Estado por meio de organizações hierárquicas verticalizadas, que visam acumular o poder e exercê-lo em nome da base, sem a participação desta. Buscam na horizontalidade uma nova forma de fazer valer suas posições e de fazer política.

Segundo Evers, estes movimentos alternativos defendem que o desenvolvimento das forças produtivas deve ser subordinado aos desenvolvimento das forças humanas da vida, a começar com as únicas que eles mesmos possam desenvolver: suas próprias forças. Ele avalia que o raio de alcance da ação promovida por estes movimentos é muito mais limitado em termos conceituais, mas infinitamente mais prático; conseguem, com isto, mobilizar multidões em todo o mundo, haja vista a fenomenal movimentação de protesto em Seattle em novembro de 1.999 contra a cimeira promovida pela Organização Mundial do Comércio, repetida recentemente contra as reuniões do Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional em protesto à globalização econômica e à  exclusão social. Reflete ainda que não pretendem conhecer a história melhor e antecipadamente. Mas fazem - ou vivem - a história mudando seu próprio presente. "E a única maneira de evitar a perda da oportunidade de mudar o presente reside na espontaneidade".

Segundo ainda Evers, “o proletariado alemão não se fez muito presente nas lutas travadas pelos movimentos sociais alternativos ou contra-poderes por uma realização individual imediata e por condições de vida humanas; de maneira geral tem agido como defensores do industrialismo e da organização social, administrada pelo Estado”.

Embora se considerem internacionalistas, parte do movimento sindical brasileiro de caráter corporativo e outra, fiel ao "dogmatismo revolucionário", tem agido da mesma maneira em questões relacionadas à saúde e trabalho, não obstante o caráter epidêmico, progressivo e irreversível, em geral, das doenças profissionais. Aos trabalhadores, por conseguinte, não lhes sobram outra alternativa que não seja a escolha entre a saúde ou o trabalho!

            Evers argumenta ainda que o imediatismo presente nestes novos movimentos sociais pode ser a sua maior virtude e ao mesmo tempo sua maior limitação. É neste sentido, com sentimentos contraditórios, que ele teme que muitos elementos presentes nestes movimentos sejam mera reprodução de erros históricos, como também que estas organizações puramente informais em base espontâneas não consigam efetivamente dialogar e lidar com o mundo externo, que não pode ser eliminado por "força da vontade". Vogel(1997)[3], também preocupado com esta questão do imediatismo de uma luta que constrói "a identidade do grupo sobre o sofrimento, em cima de algo que é vivido como negativo", alerta que se de um lado trazem a visibilidade social dos problemas de saúde no trabalho, por outro dificilmente têm condições de dar uma resposta duradoura aos problemas sociais. Esta última preocupação do autor reflete uma crítica à "lógica do imediatismo"; isto é, resolvidos os problemas pontuais, estes trabalhadores e ex-trabalhadores não estariam mais se organizando. Consideramos que, mesmo havendo esta possibilidade, tais movimentos, teriam cumprido um papel importante em nossa área de saúde, trabalho e meio ambiente: o de tornar visível a doença profissional e os riscos deste agente à(o)s trabalhador(a)es e à população em geral.

            Na mesma linha, Daniela Vicherat[4], em um debate sobre Democracia Ambiental na Comissão Técnica da União Européia, chama a atenção para o risco destes movimentos contra-hegemônicos, que, no afã de se contraporem à influência e o poder das transnacionais e seus organismos hegemônicos, possam assumir uma "lógica instrumental e totalitária de funcionamento".

Paoli(1991) também se debruça sobre algumas características destes movimentos sociais: são constituídos em torno de uma identidade que é auto-definida pelo sujeito na ação e no conflito, compondo um "nós" que se contrapõe ao "outros". Eles se distinguem das associações que funcionam com a "lógica da assistência", baseada na "entre-ajuda" para resolver o problema comum que os reuniu, conforme observa Thébaud-Mony(1990).

Os contra-poderes ou os movimentos anti-hegemonia tem um maior questionamento da origem do problema, buscando atingir focal e globalmente os poderes constituídos. Só assim, cremos ser possível um outro mundo!

           

Referências Bibliográficas

EVANS, P. Globalización Contra-Hegemónica: Las Redes Transnacionales como Herramientas de Lucha contra La Marginalización. Contemporary Sociology 1998.

EVERS, T.  Estatismo vs. Imediatismo: noções conflitantes da política na Alemanha Federal in Novos Estudos Cebrap 1983; São Paulo, v. 2, 1, p. 25-39, abr. 83.

FONSECA, R. S.  El Trabajo y la Inclusión Social desde la Perspectiva del Desarrollo Humano. DHIAL 2000, Magazine nº.  7.   

GIANNASI, F.; SCAVONE, L. & THÉBAUD-MONY, A. Cidadania e Doenças Profissionais: o Caso do Amianto. Revista Perspectivas  1999; n.22,  UNESP.

HARDT, M. & NEGRI, A.  O Império. 2a. Ed.,  Editora Record, Rio de Janeiro, 2.001.

PAOLI, M. C. As Ciências Sociais, os Movimentos Sociais e a Questão do Gênero, Novos Estudos CEBRAP, SP, n.31, outubro 1991, pp.107-120.

PASSET, R. A Ilusão Neoliberal. Ed. Record, Rio de Janeiro, 2.002.

PORTES, A. Villagers: The rise of transnational communities. The American Prospect, nº. 25, 1999. 

SASSEN, S. Global Financial Centers. Foreign Affairs, 1999, vol.78:75-87, nº. 1.

THÉBAUD-MONY, A. L’  énvers  des  societes  industrielles. Approche comparative franco-brasiliense. Paris, Editions  L’Harmattan, 1990, 224p.

 

 

 

 


[1] SOUZA, N. H. B. Trabalhadores Pobres e Cidadania: A Experiência da Exclusão e da Rebeldia na Construção Civil. Tese de doutorado apresentada ao Depto. de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1994.

[2] Movimentos como o MST-Movimento dos Sem-Terra, Pela Paz e Contra a Violência Urbana, de apoio ao povo do Timor do Leste massacrado pelo governo da Indonésia e contra o regime totalitário e discriminatório do Taleban no Afeganistão conseguiram forte apoio da opinião pública internacional.

[3] VOGEL, L. Debatedor in THÉBAUD-MONY A.(org) Santé, flexibilité du travail, précarisation. Le cas des Maladies Professionnelles. Approche comparative franco-brésilienne. Relatório Final do Réseau INSERM/Nord-Sud, Paris, 1997, p. 51.

[4] Daniela Vicherat comenta em artigo na Internet o trabalho de P.Evans(Globalización Contra-Hegemónica: Las Redes Transnacionales como Herramientas de Lucha contra La Marginalización).